Entrevista - Jornal Correio oline

[Publicado no jornal Correio da Paraíba oline]

O ponto é: liberdade. O valor supremo para o ser humano. Assis Chateaubriand gozava de liberdade para esmigalhar oponentes nos jornais e revistas de sua propriedade; com a mesma liberdade, reprimia a opinião divergente de qualquer um de seus jornalistas, sumariamente.

1924 e 1984; Chateaubriand compra seu primeiro jornal; exerceu poder influenciador midiático, mas nem de perto a manipulação e o controle do “Big Brother”. 1808 e 2018; o início da Imprensa Régia – na qual os traços da Casa dos Bragança eram tão perfeitos quanto o retrato do Brasil – e o presente, onde a vigilância e o sofisma imperam na sociedade como nem mesmo George Orwell imaginou.

Ainda há remanescentes no Brasil, dentre os 73% de usuários de Internet (Cetic.br 2017), que não serão localizados pelo Facebook, Whatsapp, ou Instagram, as redes sociais digitais onde grande parte dos internautas se encontram. Paulo Kretcheu é um deles. Convicto de estar livre das redes manipuladoras que capturam informações em jardins fechados, no entanto, Kretcheu vale-se de uma delas para difundir meios de resguardo da liberdade. Pela liberdade.

No Youtube, lá está o seu canal com mais 47 mil inscritos. Kretcheu tem a reputação de ser capaz de transformar assuntos aparentemente complexos em algo que seja compreensível por pessoas comuns. E o que seria “aparentemente complexo”? A liberdade. No fundo, a luta é pela liberdade do conhecimento; a arma nas mãos de Kretcheu é a tecnologia da informação. O software livre.

Márcia - Onde e como a tecnologia da informação se insere na luta pela liberdade do conhecimento?

Kretcheu - Essa luta, no campo da tecnologia da informação, se dá pelo uso dos softwares livres. Hoje os softwares têm uma interferência ativa na vida das pessoas de qualquer idade. A partir do momento em que a pessoa tem sua vida definida pelo software e esse software não é livre, ela está dependente de interesses de outros, sobre os quais ela não têm controle, nem conhecimento sobre o que é feito dessas informações trafegadas pela tecnologia.

M – (Para entender melhor: nem Proprietário, nem Open Source; o Software Livre é mais do que um sistema de licenciamento de programas usados nas máquinas para extrair-se delas o propósito desejado. Os programas de computação são criados por pessoas que investem recursos como tempo e conhecimento. Nesse caso, os desenvolvedores podem cobrar seu uso, ou não. Podem revelar o código-fonte, ou não.

Os softwares proprietários são pagos e seus códigos inacessíveis. O proprietário faz as atualizações e distribui para quem pagou pela licença de usá-lo.

As licenças livres - Open Source e GPL - definem que o código é gratuito, pode ser distribuído gratuitamente e sofrerem modificações. Como o acesso ao código é irrestrito, então a viabilidade comercial se faz pela prestação de serviço e não pelo licenciamento. As licenças Open Source são mais permissivas e autorizam, inclusive, que o código seja posteriormente fechado.

Já a GPL é uma licença CopyLeft, que perpetua a liberdade, restringindo que o código seja fechado. O Movimento Software Livre luta por essa liberdade do usuário garantindo o acesso ao código dos programas de computador.)

M - Pessoas comuns não conhecem linguagens de computação… Como elas podem controlar a manipulação dos dados?

K - Essa deficiência é na consciência, não no campo dos conhecimentos técnicos. É natural que um usuário regular não tenha conhecimento técnico. Mas, saber que essas informações podem ser usadas contra os indivíduos, as pessoas  também não sabem (e se souberem, não imaginam a gravidade por não darem bola pra isso).

Será que nossa conversa está sendo captada, gravada pela operadora? Será que ela tem um programa de computador que identifica palavras nas nossas falas e nos qualifica em um determinado perfil?

Será que você e eu estamos à vontade para falarmos o que pensamos ou será que teremos a nossa liberdade cerceada pelo receio de que alguém está gravando e poderá interferir?

M - E como o software livre pode nos “salvar”?

K - Para que a gente tenha “salvação”, precisamos usar exclusivamente softwares livres, o que no mundo de hoje é impossível. Justamente por falta dessa consciência é que isso se torna impossível. Não é uma questão técnica. É comercial. Não faltam softwares, sob licenças livres, capazes de fazerem tudo o que a gente deseja da nossa tecnologia.

Mas, na questão comercial, esse controle sobre as pessoas é interessante para algumas corporações e governos. O que fazemos usando o software livre é, de alguma maneira,  nos defendermos desse ataque. Ninguém está absolutamente, livre e isento de estar sendo atacado de alguma forma. Mas a luta pela liberdade é constante e, de certa forma, inglória. É uma luta entre Sansão e Golias.

Mesmo que o Facebook ou Whatsapp estejam sendo executados sobre o software livre (por exemplo, o Android), não resolve. Portanto, além de usar software livre, tem que estar ligado com quem entende e luta pela privacidade e liberdade do usuário.

M – Qual é a alternativa do usuário? Como agir? Desconectar-se?

K - De fato, esse é o dilema de cada um que tem compreensão sobre isso. Essas redes, que o pessoal costuma chamar de redes devassas, porque são centralizadoras, de uma nação diferente da nossa, elas têm como modelo de negócio a usurpação do usuário. E não é de se esperar que elas tenham outro comportamento.

Por outro lado, tem essa visão que, para mim, não é totalmente verdadeira, que é a de estar ou não conectado ao mundo. Na verdade há outras redes como o Diáspora – uma mistura de Twitter com Facebook. É uma rede federada que qualquer um pode montar em um servidor livre. E há outras redes de comunicação, como a rede Matrix, uma ferramenta equivalente ao Whatsapp e o Telegram. Então, existe saída. Agora, diante das pessoas comuns, seduzidas pela mídia, a luta se torna muito desigual.

M - Seduzidas pela mídia e a própria família; é notória a influência dos familiares no uso das redes sociais. A sua família usa software proprietário?

K – Eu não tenho Whatsapp, desde o início, quando a ferramenta foi criada; eu usava outro software e optei por nunca criar uma conta no Whatsapp. Eu convenci minha esposa e filha a usarem o Telegram, apesar de que ele não é livre. Ambas têm o Whatsapp também, então vamos negociando. Mas, em casa ninguém usa Windows. Nem na casa dos meus pais. Às vezes, é mais fácil convencer clientes do que familiares!

M – Existe uma conjuntura moldada em benefício ao software proprietário?

K - No caso dessas redes, a coisa é bem complexa. Um dos pilares do Marco Civil da Internet é a defesa da neutralidade da rede. No entanto, nossos legisladores acabam por permitir que esse princípio seja descumprido por parte de algumas operadoras. Por exemplo, elas oferecem uma oferta de acesso ao Facebook e Whatsapp sem descontar do plano de dados. É impossível a pessoa se desvencilhar dessa oferta. Ao meu ver, isso está à margem da lei.

A pessoa comum não percebe a escolha. Acha o Whatsapp maravilhoso. Mas, na verdade, ela está maravilhada com a possibilidade de se comunicar. Essa experiência não é uma criação do Whatsapp e há outras tantas ferramentas que proporcionam a mesma experiência ou até melhor.

Parece que comunicação instantânea só é possível através do Whatsapp. Há uma dificuldade até de compreender.

Eu sou crítico da ferramenta, esclareço o uso dela, mas eu não posso ser crítico ao indivíduo, ou à pessoa que usa a ferramenta, pois desconheço a razão pelas quais a pessoa cedeu e a acabou entrando. Porque, de fato, a gente sofre pressão. As pessoas já não perguntam mais. Elas dizem: “Vou te mandar um Whats”.

Eu vou perguntar a você: Você tem Facebook?

M - Tenho!

K - Não. Quem tem Facebook, é o Mark Zuckerberg. Você tem uma conta no Facebook. E uma conta que pode ser eliminada no instante em que ele quiser. O trabalho de marketing deles faz com que você se sinta dono daquele espaço no Facebook, que é a sua conta. E você trata com carinho, chamando por “meu Face”. Mas você não é dono de nada. O que é feito com as informações que você deixa lá?

Isso é grave. Gravíssimo. Nós vimos há pouco tempo nos Estados Unidos e estamos vendo nesse ano aqui na Terra Brasilis o quão importante essas duas ferramentas são para a definição do futuro de uma nação de mais de 200 milhões de habitantes.

Quando nós mantemos um diálogo, é natural que você tente me influenciar de alguma forma e vice versa. É salutar. Mas estamos falando de um para um. Um “di”-álogo. A ferramenta Whatsapp, proporciona de maneira artificial, controlada, computacional, essa comunicação. Então, a pessoa fica o dia inteiro sendo bombardeada por uma determinada forma de pensar, por uma realidade construída, que a turma tem chamado de pós-verdade; essa influência acaba por atingir.

Nós observamos pessoas de um nível acadêmico alto cedendo a essa influência.

E, justamente porque esses softwares não são livres, eles podem fazer o que bem querem, sem que ninguém perceba. Nem possa alterar como ele faz.

O facebook, que é o dono do Whatsapp sabe com quem você fala, com qual frequência, e o que você fala. E ele consegue te posicionar em um determinado perfil e sabe, exatamente, qual o melhor caminho para ele influenciar você. Isso é um 1984 extremamente sofisticado. E já faz parte da nossa realidade.

E o pior, é que todo esse perfil é traçado por algorítimos que não são os nossos nem estão no Brasil. Não é natural, nem espontâneo.

M – E hoje em dia, os hackers é que são considerados os vilões.

K - A gente, ligado ao movimento do Software Livre, não usa o termo “hacker” com esse significado. Ainda hoje, o “hacker” é aquele que desenvolve um código, ou o amplia e o dissemina sob as licenças do software livre. Na etimologia da palavra, hacker é o fazedor de hack, em português, seria o “fazedor de “gambiarra”: é imaginar um uso inovador para alguma coisa. A gente extrapola o termo para “cultura hacker”, que não se limita à tecnologia da informação. Imaginar novos usos é um pensamento tipicamente hacker. É transformar a realidade.

A televisão é que procura mistificar e transformar o termo em uma figura criminosa.

M - Agora passou pela minha cabeça que ninguém aplica essa inversão de conceito para os donos de facebooks e outras redes. Todo o conteúdo que eu deixo nesses softwares é usado criminosamente contra mim mesmo e, no entanto, eu não tenho a visão de que essas ferramentas são criminosas. Pelo contrário. Eu acredito no conceito inverso de que essas ferramentas são a solução para a vida moderna.

E o “hacker”, a pessoa que encontra soluções e compartilha o conhecimento, esse se tornou um criminoso

K - É completamente maluco. É a pura e simples realidade, muito além do que George Orwell poderia imaginar! As pessoas não identificam que há um vilão. A dominação é completa.

M - Sim, porque o vilão de 1984 está muito bem identificado. A manipulação da imprensa tradicional também é desvelada; mas nas redes sociais, por onde as notícias são mais disseminadas hoje, o vilão opera ocultamente.

K - Alguns vão sugerir que esse vilão é o Estados Unidos da América. Mas não é tão simples assim.

Para nossa conversa não ficar só na parte ruim, com o Software Livre, ainda há esperança de que isso possa ser alterado e que a gente possa ter controle sobre essas coisas.

Então, a militância pelo Software Livre, vai muito além da tecnologia. Ela tem cunho social e democrático.

A gente sempre costuma definir o movimento do Software Livre, que surgiu na década de 1980, como um movimento que é social e político, em defesa dos usuários. Àquela época, os computadores eram muito menos populares do que são hoje e a visão do Richard Stallmann era a de que os computadores seriam muito utilizados e que a vida dependeria deles. Em virtude disso, o movimento foi criado. É uma resistência à dominação de grandes interesses, de grandes corporações.

Só que eles conseguiram inverter a jogada. A tecnologia evoluiu de tal maneira que hoje, embora eu tenha um computador e você tenha outro, se a gente não tem conectividade, a gente praticamente inexiste um para o outro. Se você usa essas ferramentas de edição de texto, de planilha, que estão na Web, você passa a fazer computação através de um computador que não é mais o seu. O seu computador só é a janela para o computador que está fazendo a computação, e onde efetivamente estão os dados. Independente de você usar o software livre, o domínio está sobre você.

M – O caso do Google Docs, o 365, da Microsoft, Youtube… coisas desse tipo. Entendi: software livre, não é simplesmente “gratuito”.

K - A ferramente é extremamente simples, eficiente, aparentemente gratuita e altamente sedutora.

Eu tenho uma conta do Google mas eu não uso o G-mail pela Web. Uso por um cliente de e-mail pois tenho preferência por trocar e-mails usando criptografia, de forma que os meus e-mails não possam ser lidos pelas ferramentas do Google.

M - Mas o senhor é uma pessoa qualificada que sabe como fazer isso. Eu sou jornalista e não tenho conhecimento de como aplicar criptografia em meus e-mails.

K - Uma das atividades que eu vou fazer na EXPOTEC, nesse ano, é justamente segurança da comunicação para pessoas comuns. Existem opções que podem ser utilizadas para manter a privacidade. A ideia é explicar o conceito e apresentar o e ferramentas que podem ser usadas por pessoas comuns.

 


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